O juiz não é a “boca da lei”, é uma assertiva já consolidada no universo jurídico. E mesmo sendo Kelsen reconhecidamente intitulado como positivista, curvou-se às práticas solipsistas provenientes da interpretação subjetivista do direito. Isso porque, segundo Streck (2010), Kelsen não chegou a ser perfeitamente compreendido. A este respeito, denota que Kelsen adotou a discricionariedade, ao passo que a entende como uma fatalidade, justamente para preservar a pureza metodológica. O autor ainda questiona o fato de Kelsen ter sido mal interpretado, a exemplo das teorias semânticas e pragmaticistas, ao compreender que o juiz no momento da aplicação do direito poderia ser a solução e não uma fatalidade (STRECK, 2014a). Os atos discricionários podem ser avocados quando as interpretações estão “fora da moldura” e o que se questiona é se esta possibilidade também é permissível, nos casos em que a interpretação está “dentro da moldura”, idealizada por Kelsen. A hermenêutica filosófica defendida por Gadamer aquece a discussão a cerca da possibilidade, do sujeito avocar sua subjetividade no ato de interpretar. O ponto de equilíbrio da teoria gadameriana consiste em permitir que o intérprete produza sentido ao texto, ao invés de ser apenas um mero reprodutor de sentidos (esquema sujeito-objeto). Ao mesmo tempo, rechaça o solipsismo que dá margem à discricionariedade judicial. Streck (2010) traz a tona velhos verbetes que passam a ser questionados no ato de interpretar como, “qual a vontade do legislador”, “qual a vontade da lei” e muito embora esteja afastado deste “formalismo- realismo”, compreende que a falta de blindagem legislativa é um risco para a democracia. E sustenta que leis democráticas são aprovadas, sendo nosso dever fazer com que se cumpra a letra da lei (STRECK, 2014a, 2010). O cumprimento de uma lei democraticamente constituída é um avanço considerável. “Portanto, não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”. Obedecer “à risca o texto da lei” democraticamente construído (já superada a questão da distinção entre direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda antiga (positivismo primitivo)” (STRECK, 2010, p.170). E quanto à dogmática jurídica e interpretação da lei, Streck (2014a) vem dialogar com Aníbal Bruno, o que descreve a interpretação instantânea e imediata em relação à clareza do dispositivo legal. É preciso que o intérprete compreenda o valor semântico do texto jurídico. Ao texto literário ou poético poderá ser dimensionada uma interpretação mais aberta, ao passo que ao texto jurídico o entendimento precisa ser mais limitado, pois se trata de direitos das pessoas, devendo ser afastado qualquer tipo de arbitrariedade interpretativa (STRECK, 2014b). Dialogando com Kelsen, em especial diante da ausência de um método que seja garantidor da “correção” do processo interpretativo, Streck (2014a) entende não ser coerente que o intérprete transfira para a compreensão da normativa sua própria subjetividade ou vontade e assim ignore o significado linguístico do texto jurídico. Para que não haja insegurança jurídica, o poder jurisdicional deve ser revestido de constitucionalidade. O autor admite ser possível um grau mínimo de subjetividade por parte do magistrado/intérprete (subjetividade conferida por Gadamer), mas não se pode desviar o foco da natureza estatal e de sua atribuição legal, o qual é revestido. As questões ideológicas, políticas, ou de qualquer outro porte, não podem servir como embasamento nas decisões judiciais que devem ser pautadas por princípios, no sentido dworkiniano e também adotados por Streck (2014a). Em Verdade e Método, Gadamer (1999) discorre a respeito de hermenêutica jurídica. O filósofo alemão entende que a lei precisa ser analisada sob uma perspectiva adequada. Faz-se necessário que o magistrado/intérprete compreenda a norma, o seu sentido original, e posteriormente a aplique. O posicionamento gadameriano é sustentado na applicatio que corresponde ao ato de compreender e de aplicar sentido. A subjetividade do intérprete, porém, não é ilimitada. O que Gadamer (1999) propõe é uma espécie de encontro com a verdade do texto e com as próprias concepções do intérprete. A interpretação, portanto, não se encontra em livre disposição de consciência. Streck (2014a) relata que somos dotados de pré-juízos que nos projetam sentido durante o ato de interpretar. Ocorre que esses pré-juízos precisam ser legítimos e às vezes é necessário que o julgador os suspenda, em busca da verdadeira interpretação. O sentido ilegítimo pautará a interpretação em erro. No campo do constitucionalismo contemporâneo, Streck (2017) entende ser possível demarcar a validade das leis e os limites semânticos para que sejam considerados, no plano hermenêutico. Este posicionamento em nada tem a ver com o esquema sujeito-objeto que acaba por concentrar o “sentido” no sujeito (intérprete) ou no objeto (lei). No processo da interpretação sustentada na faticidade, há uma interação ancorada por uma comunidade de sujeitos (tradição). Em busca de respostas adequadas, Streck (2010, p.165) descreve que “a superação do positivismo implica a incompatibilidade da hermenêutica com a tese das múltiplas ou variadas respostas”. Isso porque os problemas jurídicos necessitam de respostas adequadas, pois, o “alargamento” de múltiplas respostas possibilitaria uma discricionariedade judicial desenfreada.
REFERÊNCIAS: GADAMER, Hans - George. Verdade e método. Flávio Paulo Meurer, trad. 3 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “Letra da Lei” é uma atitude positivista? Revista NEJ - Eletrônica, V. 15, n. 1, p. 158-173, jan./abr. 2010. ______________Hermenêutica jurídica (e)m crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014a. |
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